Friday, 31 December 2010

Protesto contra todo Ano Novo

Recentemente fui tomado por um sentimento de inquietação. Li manifestações aqui e acolá de anti-Natalismo. Ora, mas o que leva as pessoas a odiarem o Natal? O que as leva a criticar com tanta veemência uma festa de celebração e fraternidade? Uma coisa é um simples não-gostar, outra coisa é repugnar.

Os argumentos que me deram foram dos menos convincentes possíveis. "Ah, é que tem muita hipocrisia nessa época", grita o primeiro blasézinho. Não, meu caro, sinto advertir-lhe de que Hipocrisia não é uma manifestação escatológica que o Papai Noel vai deixando como rastro ao cruzar os céus globalizados. As pessoas podem ser falsas e dissimuladas o ano inteiro. Em homenagem a tais indivíduos, os blasés de boutique, arrisco-me a escrever um texto com considerações sobre a Festa de Ano Novo.

Apenas para esclarecer, escreverei colocando-me em seus lugares de seguidores de modinha "Emo" a partir do parágrafo a seguir.

"Ah, eu odeio o Ano Novo. Coisa mais chata, sem graça. Ficar com a família vendo pela TV coisas como 'O Show da Virada' (ou seja lá como chamam isso, eu nem assisto TV mesmo, sou muito cool pra isso e para quaisquer outras formas de distração e pensamentos que não sejam originários de minhas idiossincrasias). Quando não é isso, a única escolha é sair com amigos até uma praia e ficar enchendo a cara, pisando em camisinhas à beira-mar, espinhos de rosas de oferendas a orixás ou garrafas de champagne enterradas na areia. Igualmente chato, tudo é chato, pra mim nada basta e qualquer tipo de alegria que não venha de meu próprio corpo já é uma inclinação ao diabólico Capitalismo.

Pois é aí mesmo que queria chegar. Ah, companheiros, pensavam que poderiam criticar o Natal apenas, por toda a Hipocrisia de ter gente à sua volta desejando-lhe felicidade e todos aqueles clichés? A Hipocrisia de ter uma ceia farta enquanto milhares de pessoas estão morrendo pela fome e pela miséria?! A Hipocrisia de vestir roupas novas?! A Hipocrisia de se sentir até minimamente feliz enquanto boa parte do mundo chora em prantos?! Vocês não têm vergonha? Sou eu o último e único a protestar hoje?! Vive la Résistance!

Tudo é Hipocrisia e Capitalismo, devemos lutar contra essas coisas. Aliás, prova de inteligência mesmo é manter um vocabulário que só gire em torno dessas duas palavras, assim como eu. Eu sou inteligente, vocês não. Afinal, o que proponho aqui é que esse meu discursinho de "Ebenezer Scrooge universitário do século XXI" - XXI é 21 em números romanos, para vocês capitalistas burros que não sabem - seja finalmente ecoado mundo afora antes do badalar da meia-noite.

De repente, o ano que tínhamos, 2010, já não serve. Oh não, temos todos de avançar para 2011! Somos todos obrigados a mudar de ano, de calendário, tudo mais! Comprar um novo calendário! Lembro-me de quando meu bisavô me contava suas histórias, do tempo em que o capitalismo não era tão voraz e ele poderia ficar no ano que quisesse por quanto tempo quisesse. Meu bisavô ficou no ano de 1870 por toda sua vida adulta. Assim como alguns iluminados dentre nós ficam nos anos 70 e 80, por sempre a choramingar músicas de Legião Urbana, Balão Mágico, etc. Mas minha geração está perdida, desgraçadamente perdida, burguesamente insana e faminta por dinheiro!

Quero registrar neste meu discurso que sou expressamente contra a mudança de ano, 2010 já foi ruim o suficiente e 2011 seria pior. Pensem em quanto isso irá nos custar, gente! Vamos nos sujeitar a isso? A esse ritual satânico de celebração capitalista? Não, meus companheiros blasés, vamos fazer abaixo-assinados, enviar correntes de e-mail sem fonte oficial e criar uma causa no Facebook e enviar uma carta para as Nações Unidas! Vamos nos mobilizar, gente!

P.S.: Gente, quem tiver um abadá do Camaleão (é nesse que sai a Claudinha Leitte? Sei lá, sou tão blasé que não ligo tanto assim. Escrevi o nome dela certo?), por favor me dê. É que cansei de sair na pipoca e eu não posso comprar - primeiro porque não tenho grana e segundo porque meus companheirinhos blasés de extrema esquerda revolucionária parariam de falar comigo se soubessem que eu dividi o abadá em 70 anos no cartão. Quero sair no bloco no ano que vem, porque se é pra levar cantada de cordeiro fedorento, pelo menos que seja do lado de dentro. Até porque, se eu ficar acessando meu 3G na pipoca alguém pode me roubar e não vou poder xingar no twitter sobre isso depois".
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Monday, 25 October 2010

Guia de Anti-ajuda

EDUCANDO PELA MÚSICA

Segunda-feira. De novo. A semana começa e volta a rotina. Esperar o maldito ônibus, superlotado e que cobra mais do que deveria. Rezar para que alguns de seus companheiros de transporte fiquem seriamente doentes, para sobrar um lugarzinho para sentar ou simplesmente apenas porque eles não têm noção de que banho se toma com água e não com desodorante – ou aquele perfume barato que não é igual ao seu. Mais um dia numa sala de aula com gente insuportável, ou num trabalho que não lhe paga o que merece. É óbvio que alguém tem de sofrer junto com você, já que suas preces de nada adiantaram e esse povo insiste em pegar ônibus até com gripe suína. O que fazer? Primeira dica: guarde o fone de ouvido e force todo mundo a escutar as músicas que você quer.

Alguns olham de canto, outros fazem cara feia (muitos nem precisam fazer tanto esforço). Eles parecem realmente não gostar. Doidos para pedir-lhe que diminua o volume, eles se seguram por educação ou por medo. Não importa que o chamem de anti-social, você sabe que estão errados porque esse título só pertence à gente feia e a quem não sabe se divertir. Pior seria tocar aquelas músicas de elevador. Música clássica dá depressão. Você está prestando um serviço comunitário, isso sim! Trazendo alegria em forma de funk carioca, arrocha, pagode e sabe-se lá mais o quê! Aí vem logo à memória o comentário de alguém sobre uma matéria no The New York Times (nem procure saber o que é isto, é importante porque está em itálico e em inglês) sobre os benefícios desses estilos e outros poucos mais que você curte.

Tantos minutos no trânsito infernal, você com medo de mexerem na sua mochila ou de ser molestado sexualmente e ainda aquela criança remelenta chorando no colo da mãe, sentada onde você poderia (deveria) estar. Há duas saídas: elevar o volume ao máximo para abafar o choro, ou reclamar com a mãe que a zoada da criança não está deixando ninguém escutar sua música. O volume vai ao máximo porque a mãe tem cara de quem faz barraco.

Agora digamos que você tenha dado sorte e esteja sentado, mas está muito abafado no ônibus e aquele povinho da colônia barata está bem perto. O que fazer? Volume no máximo, inicie a batucada. Daí para incentivar os outros a cantar junto, é um pulo. Isso é melhor que karaokê. Se você for do tipo macho, acuse os que não gostam, ou se afastam da música, de serem gays. Afinal, eles rebolam quando andam e você apenas quando dança. Se você é do tipo dama e quer manter alguma classe, apenas puxe um papo com o cobrador falando que aquilo é o verdadeiro significado de baianidade e quem não gostar pode sair daqui.

Bem, seus companheiros de viagem são parte da sociedade e muitos usam o máximo de quietude que conseguem achar, no chacoalhar do ônibus rangendo, para refletir um pouco e não se estressarem tanto. Nesse momento, é até lógico pensar que, se você toma atitudes que podem irritar os outros ocupantes daquele espaço, então pode ser chamado de anti-social.

Segundo o minidicionário Sacconi (1996), por exemplo, anti-social se define assim: “1. Que ou quem é hostil às leis e instituições sociais ou a qualquer comunidade organizada. 2. Que ou quem não gosta do convívio social. 3. Que ou quem é desrespeitoso(a) e indelicado(a) com os outros; grosseiro(a); rude”.

Nada tema, porque isso não dá cadeia – melhor ainda, não dá multa. E você talvez nem precise mudar. Se eles não apreciam o seu gosto ou a sua alegria, então provavelmente, ou melhor, certamente o problema está neles. Querem chamá-lo(a) de anti-social? Ora, que chamem! Eles é que são anti-sociais, querendo que você mude. Isso só pode ser inveja. Pois saiba, caluniado(a), que eu lhe escrevo dando dicas de como se comportar diante dos seus opressores mal-educados. Lembre-se sempre: “O maior prazer de todos é sempre o seu, porque você nunca poderá sentir o prazer do outro”.
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Enquanto você se diverte


Como vou tratar, neste artigo, do perigo do uso e propagação de um recente chavão em ano eleitoral, permita-me iniciá-lo com um conselho e outro clichê: se você for um otimista compulsivo e crédulo – quase a alma de qualquer personagem da Disney, com exceção dos que morrem no penhasco – aconselho abandonar este artigo, mas “se conselho fosse bom não se dava, se vendia”. Eu gostaria de vender vários para ganhar dinheiro e buscar a felicidade plena (ou quase) pela qualidade de vida, ao invés de virar um conformista como todo baiano que teima em repetir a frase “A gente se f*** mas se diverte”.

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Thursday, 9 September 2010

Águas de Março são imunes ao Aquecimento Global

 
Ontem, quarta-feira (08), assisti um programa da TV Cultura chamado Metrópolis. Foi bom. Exibiram uma matéria sobre a cantora de jazz norte-americana Stacey Kent, falando sobre o lançamento do álbum Raconte-Moi.... Numa entrevista informal, feita inteiramente em português, Kent se assumiu amante desta língua e, obviamente, da nossa música. Contudo, me faço a mesma pergunta do artigo  de Barbara Heckler ("É o inverno que acaba, é a neve que derrete") para a revista Bravo! de setembro de 2010, sobre a mesma cantora e sua versão em francês de Águas de Março, intitulada "Les Eaux de Mars": "Por que as músicas brasileiras escolhidas pelos versionistas são sempre as mesmas e têm pelo menos 40 anos de idade?"

Assim como Heckler, eu não me proponho a responder essa pergunta totalmente, nem parcialmente, apenas provocar uma possibilidade de resposta no leitor. Em seu artigo, ela apenas comenta esse fenômeno, mas não pareceu achar nenhum tipo de dado conclusivo. Fala de algumas versões de canções populares (popularescas) lá da Idade da Palheta Lascada de Tom Jobim (Bossa Nova, etc), pontuando antes com Carmem Miranda e Zé Carioca e todos os seus enfeites, penduricalhos e lantejoulas de Brazil e Saludo Amigos! respectivamente. A pergunta ficou suspensa até o fim e eu fiquei inquieto.

Por que isso? Por que ser sempre tão unidimensional com tudo? Cadê aquele ceticismo maroto dos bons tempos? Cadê o lado cômico-Schopenhauer de encarar os assuntos? Desconfie. A Bossa Nova passou por aqui como um tufão, isso é inegável - eu teria dito furacão, mas seria exageradamente forte e recuar para "brisa", por causa da voz sussurrante de João Gilberto, seria ofensivo aos fans. Mas depois, os indiozinhos aqui só viveram a admirar seu rastro e criar uma entidade toda-poderosa; por acaso ela nos castigará se tentarmos forçar aos outros países nossos próprios e mais novos enlatados culturais (musicais)? Quer dizer, o Brasil tem estado até expansionista ultimamente - também, com tanto brasileiro no exterior... Enfim, expansionista mesmo, porque quem ainda acha que o Brasil é o pobre garotinho negro e frágil, sofrendo bullying por parte do malvado imperialista Estados Unidos, deve procurar um psicólogo e tomar várias doses de jornais ao dia.

Ainda assim, o Brasil só tenta se afirmar pela Bossa Nova e tais ícones de uma eterna "glória do passado". Sempre vivendo dessas glórias. As Águas de Março nem ouviram falar do El Niño, mas a versão francesa de Georges Moustaki para Kent, Les Eaux de Mars, já fala de derretimento da neve. Eu assinei a Bravo! recentemente pois, há um tempo, eu a leio para descobrir o que existe de novo aqui, culturalmente. É maravilhoso que pelo menos em algum canto só se fale dessas glórias em ocasiões comemorativas. Heckler fala inclusive da "consagração internacional" de certas canções. Ora, esses jovens músicos (músicos, eu disse!) brasileiros aí facilmente se consagrariam nesse nível se quisessem. Não porque são brasileiros, mas porque paixão por música nasce em qualquer lugar e um talento bem polido leva naturalmente à consagração mundial, basta investir. Agora, não dá para investir em nada enquanto ficarmos choramingando os louros de Tonzinho, de Ary Barroso, Caetano, etc, etc, etc. Cristo, mais parecemos cachorros com um osso na boca!

Não quero dizer que os "clássicos" devem ser jogados no lixo. Jamais. Entretanto, é preciso reconhecer a diferença entre apreço saudável e saudosismo psicopata. Reconhecer a importância histórica ou comemorar datas e eventos memoráveis deveria ser algo esporádico mesmo, sobretudo uma estrutura basilar para o suporte de toda nossa evolução futura. Por que não se comemora o "Dia do Polegar Opositor"? Porque há coisas mais essenciais, já percorremos um longo caminho desde então e temos um futuro adiante.

"Por que as músicas brasileiras escolhidas pelos versionistas são sempre as mesmas e têm pelo menos 40 anos de idade?"? Porque, meus caros, o saudosismo acomete infinitamente mais sujeitos aqui que a Febre Mediterrânea Familiar e causa mais danos. Porque aqui só se encoraja continuar bajulando o pretérito. E pior fica no nível nacional: reparem que em todo fim de festa sempre tocam um sambinha lamurioso, todos os sucessos de Legião Urbana, blablabla, Balão Mágico, blerg! Graças a todos os deuses de verdade (não a Bossa Nova), inventaram MP3 e fones de ouvido, são meu antídoto para esse lambe-lambe de lágrimas. Querem cultuar a Bossa Nova e essas coisas? Evoluam daí, misturem mais, ousem mais, dêem mais chances aos novos talentos. Por favor, dêem aos gringos e a vocês mesmos uma chance de perceberem as várias facetas das identidades culturais, esqueçam de Saludo Amigos! e da Garota de Ipanema porque nem Botox segura mais aquela bunda, deixem essas nádegas musicadas descansarem! E mais importante: colaborem com os gringos, dêem a eles um novo repertório para suas versões.

Foto: Capa do novo álbum de Stacey Kent, "Raconte-moi...". Crédito: TheHindu.com
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Friday, 23 July 2010

RESENHA: "Os moedeiros falsos"



Pouco depois de encontrar Franny and Zooey de J. D. Salinger na livraria, avistei Os moedeiros falsos de André Gide. Dele, o que eu mais procurava mesmo, confesso, era O pombo-torcaz, cujo único exemplar disponível estava nas mãos de algum cliente. Instintivamente, e por um ciúme infantil, agarrei-me ao exemplar que agora apreciava. Enamorava-me por sua escrita desde a primeira página e tive ciúme dos avanços anteriores dos outros nela e nas seguintes.

Os moedeiros falsos foi escrito em 1925 – alguns dizem 1926 – por André Gide (1869-1951), ganhador do Prêmio Nobel em 1947. O título sugere algo que o conteúdo meramente pontua, como uma vírgula, sem a qual, entretanto, todo o resto não faria muito sentido ou pareceria precariamente fabricado e artificial. Este é também o nome do livro a ser escrito por um dos três personagens centrais: Édouard, tio de Olivier, o melhor amigo de Bernard. É interessante como a moeda falsa serve como objeto de metáfora, de metalinguagem e da intriga.

Até cerca da metade do livro, tem-se a impressão de que essas moedas falsas simbolizam cada personagem que se oferece e barganha uma estima alheia maior que a qual lhes cabe. Moedas manufaturadas, como aquela mostrada por Bernard durante uma conversa sobre o livro de Édouard (sem uma linha escrita sequer), quando ele diz achar melhor apresentá-la desde o início como um “fato bem exposto” ao invés de “partir de uma ideia”. Esta mesma moeda revelada a seus ouvintes, momentos depois, acaba por denunciar seu forjador – o qual é mencionado no começo, aparece perto do final e some rápido de circulação, não sem deixar prejuízos.

Gide obedece muito bem a organização de um romance, não há personagens jogados à sorte, todos os mencionados aparecem outras vezes para fechar um ciclo ou ligá-lo a um segundo, não importa o quão sutil. Aqui ele mostra que sabe escrever tanto para críticos quanto para o próximo leitor. Há aqui um cuidado, uma finesse narrativa, um “Ne me quitte pas!” de um amante que com charme e lábia lhe convence a deitar-se um pouco mais, virar cada página e despi-lo, cada passada de folha uma nuance mais convidativa.

Édouard sugere que sua estória não seria limitada por um tema só e portanto emularia a própria vida com seus eventos ad continuum e suas conseqüências nem sempre auto-solucionáveis. Assim também é este livro, por isso me agradou tanto essa leitura, alegro-me por começar a penetrar o mundo literário deste escritor com ele.

Como disse antes, pretendia ler O pombo-torcaz primeiro. Li uma pequena matéria sobre ele na revista Bravo! de agosto de 2009, na qual o jornalista e escritor José Castello questionava se “Existe uma estética homossexual?”. Nela, Castello mostrava certos autores homossexuais e o elo que mantinham entre a escrita e as relações homoeróticas. Enquanto uns exaltavam-nas ou depreciavam-nas, André Gide não as encarava com a afetação de Oscar Wilde (de quem era admirador, inclusive) ou o desdém de Marcel Proust. Ele era a favor do liberalismo sexual onde elas fossem vistas de modo natural, como o lazer e a interação dos sexos opostos.

O pombo-torcaz é também o apelido (carinhoso, arrisco dizer) que o autor deu a um rapaz com quem tinha relações no verão de 1907 em Toulouse. Ferdinand Pouzac fora assim chamado porque “arrulhava” feito um pombo quando eles faziam amor.

Há também a homoafetividade em Os moedeiros falsos, mas mesmo ela sendo importante como um contexto, talvez, ela é só um detalhe, quase tão discreta quanto outras ali das quais só podemos suspeitar. Eis o encanto: o livro não é um pretexto para levantar bandeiras de militância ou para ejacular as fantasias sexuais do autor tal qual um conto erótico vulgar de internet. Muito menos chega a ser um cenário tipo Homoville, onde até as pedras são gays; os personagens heterossexuais são representados igualmente, sem distinção.

Esta edição que tenho é muito boa, publicada pela Estação Liberdade em 2009, com tradução de Mário Laranjeira, impressa em papel pólen soft. Este não é um livro transformador. O pombo-torcaz tampouco deve ser. Mas ele causa boas sensações, é agradável de diversas maneiras. Não é o marco das obras de André Gide, contudo eu o considero uma belíssima apresentação. A única parte que não gostei é que perto do fim ele lhe prende, ou seja, para aquele leitor que gosta de terminar cada capítulo e guardar o próximo para depois, chegar ao parágrafo final e ver que acabou é tão ruim quanto morrer de fome e perceber que aquela era a última colherada de uma sobremesa incrível.


Dados técnicos:
Os moedeiros falsos
Título original: "Les Faux-Monnayeurs"
André Gide
Tradução de Mário Laranjeira
São Paulo: Estação Liberdade, 2009
ISBN 978-85-7448-160-9
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Saturday, 10 July 2010

O Bolero e o Walkabout (Resenha de "Franny and Zooey")




Após o último romance que li (“O lobo da estepe”, de Hermann Hesse), busquei uma leitura que me descentralizasse (além de “A identidade cultural na pós-modernidade”, de Stuart Hall). Incidentalmente, “Franny and Zooey” reluz aos meus pés, um de dois exemplares (ao menos em inglês) em toda a loja. Apostei, investi em J. D. Salinger sem medo de perder. Ganhei.

Franny and Zooey”, publicado em capa dura em setembro de 1961 pela editora Little, Brown and Company (em New York); é uma junção de duas estórias publicadas na revista The New Yorker: “Franny” em janeiro de 1955 e “Zooey” em maio de 1957. Trata-se do casal mais novo dentre os sete irmãos da família Glass – Franny, 20 anos, aspirante a atriz, revoltada com os egos inflamáveis do meio acadêmico que freqüenta, é a primeira parte do livro e nos introduz à parte seguinte, Zooey, 25 anos, ator profissional, usa seu sarcasmo e humor ácido para criar um caos do qual só ele pode extrair a ordem na casa daquela família que, dos sete prodígios, perdeu dois: um, o mais velho, Seymour, por suicídio; o outro, Walt, um dos gêmeos, foi morto em guerra.

Com esses elementos, é natural pensar que é um romance de sofrimento, de fardo, ou algo muito sentimentalista, mas não é o caso. Talvez fosse, com outro escritor. Não quero dizer com isso que sou perito em estilismos literários ou um connoisseur da obra de J. D. Salinger. Tampouco sou um desses intelectualóides que lêem livros só pela grandeza do autor e fingem que estão sempre prontos para ir a um banquete de literatos da Londres do século XIX.

O primeiro livro que li de Salinger foi “The Catcher in the Rye” (“O apanhador no campo de centeio”, no Brasil), pois tinha lido um belo excerto dele no perfil do Orkut de um amigo e, ao visitá-lo em Curitiba, fomos comprá-lo (não o achava aqui em Salvador). Quem já leu sabe que não é livro de culto ou auto-ajuda, sequer tem a intenção de revolucionar a vida de alguém. Mas tem um forte apelo, pode ser até o que chamam de “Leitura de Formação do Indivíduo”; tem uma fluidez narrativa e de diálogo que parecem denunciar sua autoria.

Essa fluidez, essa musicalidade no contar da estória, combina perfeitamente com a temática zen de “Franny and Zooey”. Nada nela é doutrinário, há apenas um debate sobre filosofias e literaturas de religiões como catolicismo e budismo, é também sobre como, onde e se a fé deve ser buscada.

É indiscutível que a música clássica, por sua complexidade, fica gravada em algum canto da nossa mente depois de ouvirmos. Creio que, da mesma forma, os livros realmente bons que lemos ficam impressos em nós mesmos após a leitura. Para celebrar minha leitura deste livro (não é o melhor de todos, mas é ótimo), escrevo esta resenha ao som do Bolero de Ravel, uma sinfonia que ouvi nos primeiros anos da infância (creio que aos 5 anos de idade) e que me acompanhou a vida inteira por ser uma extraordinária marcha que, ao meu ver, conta a história do Começo do Universo e tem em seu Fim a harmonia e o estrondo.



Franny and Zooey
J. D. Salinger
Little, Brown and Company
ISBN-10: 0-316-76949-5
202 páginas
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Tuesday, 29 June 2010

RESENHA: "A identidade cultural na pós-modernidade"


A identidade cultural na pós-modernidade, escrito em 1992 por Stuart Hall, assemelha-se mais a um guia para compreensão da identidade cultural e sua relação com os indivíduos que a um livro didático de estudos sociológicos. Digo isso não só pelo seu formato diminuto (tem 12x18cm e 104 páginas), mas pelo método explicativo e linguagem adotados pelo autor.

O livro tem seis capítulos, com poucas páginas cada. Nos dois primeiros, Hall introduz o leitor a três concepções básicas do sujeito na História (levando em conta apenas a partir do momento que ele sai da sombra religiosa): o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno; para explicar como este surge e como ele se dissolve na própria era pós-moderna para se tornar o que eu chamo de sujeito pixelizado – aquele que é composto por diversas partículas identitárias que ilusoriamente dão uma forma concreta a um indivíduo e este, por sua vez, se torna um pixel maior que compõe a imagem do local.

No capítulo 3, Hall apresenta os conceitos de nação, cultura nacional e identidade nacional, partindo do ponto de que as culturas nacionais são comunidades imaginárias. Há uma relação de interdependência aqui: o indivíduo busca sua pertinência na imagem do povo nacional e ela necessita da unificação desses indivíduos para ter o sentido que a coletividade fantasia ter. Nos capítulos 4, 5 e 6 o autor trata da Globalização e como ela afeta (infecta, mas não necrotiza) a relação entre o sujeito e sua fabricada identidade nacional, a qual reage ao fenômeno pela inclusão (e conseqüente reforma), subjugação do sujeito, hibridismo (sincretismo ou Tradução) ou resiliência (reforço da Tradição e retorno aos valores de raiz ou fomento do racismo cultural e xenofobia pelo fundamentalismo e ortodoxia).

Hall diz em todos os capítulos o que ele pretende explicar, como ele o fará e em quais conclusões nós (ele e os leitores) chegaremos ao final de cada um. Além disso, as repetições sumárias dos capítulos prévios, que iniciam e infiltram os seguintes, são tão reconfortantes quanto as proferidas pela sedutora voz de Mary Alice Young (Brenda Strong) em "Desperate Housewives". Durante todo o livro, ele usa referências de verbetes e citações de grandes nomes da psicologia, estudos sociológicos e da literatura, sem cair na mesmice de usar palavreados do gueto acadêmico. Entretanto, não é nenhum "Cultural Identity for Dummies!" É uma ótima leitura, sobretudo  para os leitores do tipo Um Homem sem Pátria, K. ou Lobo da Estepe.



A identidade cultural na pós-modernidade
HALL, Stuart. 11a ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.
Título original: The question of cultural identity
Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro

Foto: Capa do livro. Fonte: Submarino.com.br
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Friday, 18 June 2010

RESENHA: "O lobo da estepe"







O leitor tem, na sua biblioteca, fragmentos de prismas que chama de livros. Eu poderia dizer que eles são espelhos refletores de sua identidade verdadeira, entretanto usei "prismas" porque, depois de ler esta obra, tento prevenir-me contra o impulso de reduzir a uma ou duas dimensões meu próprio ser, sobretudo no universo literário. O espelho reproduz a imagem do indivíduo e a limita a molduras e ângulos de visão, enquanto o prisma refrata essa imagem em várias partes e direções.


O lobo da estepe foi escrito em 1927, por Hermann Hesse (1877-1962), quando tinha 50 anos, a mesma idade do protagonista Harry Haller. Harry sente-se exausto aos 50, sente que já viveu e sofreu demais. Sua primeira mulher teve um ataque de loucura e um dia o expulsou de casa. Obviamente isso o traumatizou e ele, que sempre se dedicou aos deleites da vida intelectual (um ótimo leitor, articulista, apreciador de música erudita), sempre introvertido, acha difícil se socializar e também amar de novo. Por isso passa a definir-se como o Lobo da Estepe. O lobo também vive numa comunidade estruturada mas emana uma solitária essência.

“Como não haveria de ser eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio de um mundo cujo objetivo não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! (...) Não sei que prazeres e alegrias levam as pessoas a trens e hotéis superlotados, aos cafés abarrotados, com sua música sufocante e vulgar (...). Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem ar nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível”. (páginas 40-41)

O autor nasceu em 2 de julho de 1877, na cidade de Cawl, na Alemanha e ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1946, porém sua vida não foi desde o início voltada para a literatura. Ele teve uma educação severa e guiada por questões teológicas, uma vez que seus pais foram missionários. Somente aos 19 anos ele pôde, de certa forma, romper esses laços e começou a trabalhar numa loja de antigüidades e livros em Tübingen e Basileia.

Hesse põe-se inteiro neste livro. Suas crenças, seus gostos, suas interpretações da vida social. Conhecer Harry Haller é como ter um mapa para a personalidade do Hermann Hesse - um mapa desenhado numa mesa de bar, com todas as imprecisões da embriaguez e dos disfarces ordinariamente usados nos alter ego, mas ainda assim um mapa. Apesar de expor o que pensa sobre a guerra, a burguesia e o capitalismo em outros romances, é em O lobo da estepe que ele se despe intelectualmente, faz um mea culpa, é franco sobre suas contradições mais íntimas e se pergunta se, com meio século de vida, talvez já fosse o tempo ideal para explorar partes suprimidas de sua persona – o Harry vulgar, o dançarino, o vulnerável, o social, o que ouve música popular e até o que aprende a ver beleza e erotismo tanto na mulher quanto no homem sem entrar em crise existencial.

Harry não está desesperado, nem deprimido. Ele já pensou no suicídio como já pensou na estética dessa ou daquela poesia ou no próximo pão, todavia não planejava se matar. Ele prefere a dor infernal de suas enfermidades ou a sublimidade, a elação de um ótimo vinho acompanhado de um divino concerto de Mozart – o que ele não suporta são os dias calmos. Ele é aposentado, mas até tem dinheiro. O que lhe sobra é o tédio.

Posso compará-lo a uma outra personagem da literatura internacional: Alice, de Alice no País-das-Maravilhas e Através do Espelho (escritos por Lewis Carroll). Alice inicia sua viagem pelo País-das-Maravilhas quando encontra-se entediada no parque, pois sua irmã estava lendo e não lhe dava atenção, o que a levou a seguir o Coelho Branco até sua toca, o portal para o outro mundo. Harry começa a sua depois de caminhar, solitário e entediado, à noite, e encontrar uma porta num muro que costumava às vezes apreciar, ao cruzar certos recantos velhos e esquecidos da cidade. Acima dela um letreiro dizia:


“Teatro Mágico

 Entrada só para os raros

                  Só para os raros”


Pouco depois de se afastar um pouco do lugar por não conseguir abrir a porta, o letreiro mudou: “Só para loucos!”. Como Alice, Harry precisou de um guia que não falava muito, apenas o incitava a curiosidade e mostrava o caminho: um vendedor ambulante e um cartaz onde se lia:

“Noitada Anarquista!
Teatro Mágico!
Entrada só para ra...”


Harry quis ir ao tal Teatro Mágico imediatamente e, assim como Alice teve de pensar muito para passar pela porta do Submundo, Harry recebeu como resposta “Não é para qualquer um”. Insatisfeito, quis comprar algo do vendedor e recebeu um livreto chamado TRATADO DO LOBO DA ESTEPE: Só para loucos.

Trata-se de uma jornada íntima, da auto-descoberta, por vias alegóricas, de um ser que só na maturidade aprende a não ofender sua própria inteligência dividindo-se apenas em dois: o bem (seu lado Homem) e o mal (seu sórdido lado Lobo da Estepe). O livreto é uma análise profunda e psicanalítica dele mesmo, entregue por um estranho. Alguns personagens aparecem para mostrar-lhe outras perspectivas do seu próprio eu; tais são Hermínia, Maria e Pablo. São desdobramentos da essência do Harry.

Hermínia (seu próprio nome é uma variação de Hermann) e Maria são seu lado feminino. Enquanto esta é seu lado mais mundano, a primeira é ele mesmo quase completamente, apenas com uma dosagem significativamente menor de erudição. As duas são garotas de programa. Maria é seu hedonismo sexual e se dá a Harry sem hesitar. Hermínia é seu par em perspicácia, seduzia Harry aos poucos para ele se apaixonar por ela e então matá-la, como ela mesma havia pedido. Pablo é o seu lado masculino despudorado, o homem ideal, bonito inclusive, com “olhos de mestiço”, um homem que Harry gostaria de ser (e ter) mas não tem coragem.

Pablo, o qual lhe foi apresentado por Hermínia, o conduz lá pelo fim do livro ao Teatro Mágico, um centro recreativo ao qual se chega com o uso de drogas. Para ter completo acesso, deve se livrar de todos os tabus e amarras, o equivalente a ir a um teatro real e deixar, na entrada, além do casaco e chapéu, todo o resto que cobre o corpo. Lá tantas coisas acontecem e o protagonista aproveita sua personalidade fragmentada dentro dos espelhos do Teatro para reescrever sua história, como num mundo paralelo, atrás de tantas outras portas.

Por tudo isso, é difícil encaixar este romance numa estante específica. Sim, é Literatura Estrangeira, mas deixá-lo lá, sem nenhuma outra pista sobre o que está em seu conteúdo, é como pegar um CD do Mozart e colocá-lo na estante de Música Internacional, cercado por Madonna e Marilyn Manson.

Este não é um romance estritamente psicológico, nem simbolista ou metafísico, muito menos de auto-ajuda. Na verdade, não é uma leitura para qualquer um. Não aconselha-se, por exemplo, aos utopistas e otimistas sujarem com seus dedos de algodão-doce as páginas deste livro e nem a estas sujarem com introspecção os olhinhos de unicórnio dos que só consideram importante a alegria patológica (histeria) e vêem no rebolar do quadril a salvação humana. Este livro ficaria no centro da minha biblioteca e refrataria os inúmeros raios que compõem minha identidade sobre todos os outros.




O lobo da estepe
Hermann Hesse
Tradução e prefácio de Ivo Barroso.
35a edição. Rio de Janeiro: Record, 2010.
Título original alemão: Der Steppenwolf
ISBN 978-85-01-02028-4

238 páginas

Foto disponível em http://1.bp.blogspot.com
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