Saturday 31 January 2009

Como ser um intelectual brasileiríssimo sem ser afetado pela terrível Crise

Recentemente fui ao Pelourinho e adjacências, tinha de tentar trocar alguns livros que não me agradaram muito por razões que talvez sejam contadas num outro texto. Não consegui o que queria, as condições de trocas e preços ofertados por eles me pareciam um tanto injustos. Fui andando por aquelas ruas históricas, sentindo o cheiro de cajá e umbu sendo indiretamente cozidos sob aquele sol de "quase meio-dia", imaginando quais os motivos para a existência de algumas trapaças, mesquinhas ou não, inocentes ou propositais, naqueles focos de intelecto, que em minha visão romântica não achei (preferi não achar) que pudessem brotar tão naturalmente.

Fatigado (seria o peso da mochila? seria a decepção? seria o calor usual da cidade?), continuei, obstinado, errante, ansioso pelo conforto da virada de sorte que nesta terra vem em forma de ocasionais ventos frios. Passo por lugares-comuns em monumentos, eis que chego, ao entardecer, em uma pracinha perto do Teatro Villa Velha.

Sentei num dos poucos bancos não ocupados pelos desafortunados mendigos. Estava terminando um breve lanchinho, a opção mais barata de enganar o estômago; uma senhora, mendiga como os outros, sentiu uma certa simpatia por mim e aproximou-se. Pediu um pouco do refrigerante do qual só havia tomado um único gole; ofereci-lhe então o copo inteiro, sentindo-me instantaneamente culpado segundos depois por ter dado algo pouco saudável a alguém que estaria há horas com o estômago vazio. Não tive um grande dia e ainda ajudei a piorar a gastrite de uma pobre idosa.

Conversei um pouco com ela (talvez assim ela se esqueceria do mal estar estomacal que sentiria em instantes); ela, como já esperava, perguntou-me se eu era "dos estrangeiro". Respondi-lhe que não - você nasce moreno, com um sinal na testa, e quando não te chamam de árabe ou indiano, certamente atribuem isso a uma porra de uma novela. Enfim, expliquei-lhe o que me acontecera anteriormente e ela percebeu que eu gostava de ler. Ela então vira-se com uma alegria própria de alguém a ponto de gritar "Eureca!" e me diz que eu devo ir mais adiante até encontrar um cara "alternativo". "Ah, a senhora conhece esse termo?", disse eu, ao que ganho como resposta "Oxe, é claro! Daqui há alguns anos, também vou ser promovida a isso!".

Estava de férias. Não tendo mais o que estudar, fui atender o pedido da pequena senhora pré-alternativa. No caminho, pensei em voltar só para agradecer-lhe por mostrar o caminho ao que parecia ser meu futuro "Coelho Branco", mesmo que ela não entendesse essa referência. Encontrei o tal cara alternativo e estava seguro de não ter me equivocado: ele usava uma daquelas camisas indianas, colarzinho de praia, sandálias de couro (ou, como vim a saber mais tarde, "percatas de couro", como chamariam-nas em seu bairro) e fumava seu fiel baseado.

Maravilhado com seu personagem, disse-lhe que havia sido enviado até ele pela senhora Maryanne. Imediatamente ele bradou "Já começou errado, playboy! Pode ir tirando essa porra desse ípsilon daí, isso é coisa de burguês capitalista; tá no Brasil tem que falar Português!". Perguntei-lhe como sabia que havia tal letra em minha fala, ele respondeu que além dos poderes mágicos da maconha dele, ele via que eu não era alternativo como ele, mas que trazia livros, portanto meu caso era gravíssimo.

Meu caso? Adorei isso, sequer tinha idéia de que estava doente. "Sim, em estágio terminal", disse-me meu novo amigo, que refutou seu apelido de Coelho Branco e preferiu ser chamado de Platão do Calabá, ou somente PC.

Não aceitando um diagnóstico simplório, exigi que me dissesse do que sofro e qual é a cura. "Vou falar do que você sofre, mas a cura, a qual saberá só no final de nossa conversa, não poderei te dizer completamente". "Por quê?", pergunto eu, desesperado e inferior. "Porque no clube do qual faço parte, no qual espero que decida entrar, há um código de leis imaculável!".

"Diga logo, homem! Vamos, diga!", disse eu.

"Terei de lhe contar antes como me tornei assim", disse PC, um exato milésimo de segundo antes de sua baforada anuviar o ambiente, de forma teatral e afetada.

"Eu costumava ficar vagando por aqui também, era que nem aquela senhora: um desabrigado. Aí encontrei um cara vestido como estou agora, ouvindo seu MP3 recheado de músicas de reggae e Legião Urbana. Em breve eu também vou comprar meu MP3 para colocar minhas musiquinhas superlegais com um dinheiro que será muito diferente do seu dinheiro capitalista, porque ele será meu dinheiro, dinheiro de intelectual soteropolitano e brasileiro com orgulho.

Então, esse cara se chamava Kyle Washington Pereira Silveira. Ele detestava esse nome, que sua mãe ('aquela idiota, uma mulher ignorante do interior') tão carinhosamente havia lhe dado. Disse-me que detestava tudo escrito em inglês, mas me garantiu que não era por causa da frustração que ele tinha por ser capaz de decorar trechos de filósofos como Schopenhauer e ser incapaz de lembrar-se do 'Verb To Be', o qual lhe foi repetido durante mais de uma década no colégio público, ou de aprender qualquer outra língua. Pediu então que eu o conhecesse somente por Caio Uoshitu Pereira Silveira, pois além de seu primeiro nome soar brasileiríssimo, o segundo soava asiático e todo intelectual deste século terá de se converter aos costumes orientais, de acordo com seu próprio manual intitulado 'Como ser um intelectual brasileiríssimo sem ser afetado pela terrível Crise'. Ademais, para os idiotas e ignorantes (tais quais sua própria mãe) que não saberiam pronunciar seu primeiro nome, ele sempre teria um nome de cachorro.

Caio Uoshitu, com seu drama homérico mais intenso e teatral que qualquer grupo de atores de quaisquer universos possíveis e imagináveis, conquistou minha atenção de mendigo alcoólatra, despertando um sentimento tão forte em meu âmago que me deixou confuso - não sabia se queria peidar para que ele parasse com o teatro ou se era a minha nova paixão: tornar-me um intelectual de butique. Meu ânus não disse nada, então com certeza era a segunda opção.

Caio me disse que a primeira regra de ouro do manual é: 'Se não sabe, finja que sabe'. Brilhantemente ele me disse que isso estava diretamente ligado à Crise que estamos vivendo: ninguém pensante sabe explicar de forma clara como uma crise que começou nos Estados Unidos está nos afetando tremendamente aqui no meu Brasilzão de Ronaldinhos e Pelés, mas todos sabem fingir que sabem. Nós, como intelectuais, temos de nos unir à esperteza daqueles que aumentam os preços de tudo 'por causa da Crise', temos de adquirir o espírito, a malícia, o 'jeitinho brasileiro' tão querido.

A segunda regra de ouro é: ouça Jazz e outros estilos de música que só velhinhos e outros intelectuais ouvem, -"

"Hah! Uma vida de Jazz e bebida! Eles deveriam ouvir esse discurso quando planejavam a campanha de marketing de 'Chicago'", interrompi.

"Porra! Cale a boca! Não podemos citar filmes que não estão na lista dos Filmes para Intelectuais! Isso SE tivermos de ver filme, porque cinema e DVD são coisas de burguês ignorantes!

Então, como eu dizia: ouça essas músicas assim. Se não sabe onde baixar na internet, eu lhe direi assim que você aceitar fazer parte do nosso clubinho, conhecemos um site superlegal cheio dos CDs mais superlegais do mundo. Não importa se você não entende porra nenhuma das letras das músicas porque você não sabe falar nenhuma outra língua além desta. Apenas levante a cabeça e abra os braços quando falar desses estilos, aprenda com a estátua de Castro Alves, aquilo é a perfeição! Isso dá uma aparência de quem sabe o que fala, e é só isso que os outros precisam ver você fazendo.

A terceira regra de ouro é: goste de reggae. O reggae é bom porque você pode se permitir dançar um pouquinho, naquele jeitinho desengonçado de quem tenta reprimir sua vontade de dançar qualquer outra coisa. Ah sim, ainda tem o bônus! Sim, o bônus de afirmar que entende a força política das músicas, mesmo que na letra você só ouça 'Beba Quiki e não beba Nescau', pois o poder revolucionário daqueles que escolhem uma marca inferior de achocolatados para combater a tirania capitalista é simplesmente evidente.

A quarta regra de ouro é: goste de Legião Urbana. Sim, pois veja bem, eles são de lá dos anos 80, sei lá, mas você sabe que alguém mais inteligente e mais velho que você curte, então é sua obrigação gostar. Quem liga para as novas bandas que podem estar tentando conseguir uma vaga no cenário baiano de rock? Quem liga para o fato de que elas poderiam mostrar letras tão boas quanto ou ainda melhores que as de Renato Russo? O saudosismo é fundamental em nossa vida intelectual. Quem liga se você já ouviu 'Pais e Filhos' umas 5.378.987 vezes em vários cantos da cidade? Há sempre espaço em sua mente para a vez número 5.378.988.

A quinta regra de ouro é: vestir-se 'alternativamente'. Ser alternativo é não cair em modismos, por isso a nossa moda consiste nas seguintes peças: camisa 'indiana', de Bob Marley ou de Legião Urbana; colarzinho de praia (basta que seja de palha ou algo que só pareça ser), sandálias de couro (se não quiser ir no centro da cidade para comprar uma pelo risco de ser assaltado, vá numa loja de mauricinho no shopping que lá tem, ninguém vai saber a diferença, é só dizer que a sua não fede a merda de cabra porque você comprou há um ano); a calça, bermuda ou short não fazem tanta diferença, desde que pareçam meio hippies e não mostrem nenhuma marca de grife.

E aí você me pergunta: 'Senhor intelectual, mas e tem mais algum truque no visual?' e eu digo 'Calma, rapaz! Vou te dar mais umas dicas!'. Então, nada de perfumes. Cheiro de intelectual alternativo soteropolitano brasileiríssimo é um só: o de transporte público. Nada de perfumes, isso é coisa de burguês! Você acha que Marx usava perfume? Porra nenhuma, ele cheirava a proletariado, meu filho! Se Marx cheirava a isso, a operários, nós, que estamos sempre pendendo para o Anarquismo e jurando ser de Esquerda, temos de ir além e cheirar a operários enlatados! Ah sim, se puder jogar umas pitadas de terra em suas calças ou bermudas, melhor! Você tem que deixar transparecer um lado ligado à terra mesmo, sabe? Como um sinal de que você ainda não é ativista ambiental, mas pensa no assunto; uma maneira de dizer que também se preocupa com os mendigos e os faz sentirem-se iguais a você (e ainda tem o lado bom de que se você se disfarça assim, eles vão ter pena de você e não vão te assaltar)".

"Mais alguma coisa?", disse eu, entediado.

"Sim, na verdade temos uma sexta regra de ouro: gostar de futebol. Mas nós tivemos de retirar essa, porque cinco sempre parece ser um número mais místico, seis parecia ser muito fraco. Mas também, quem não gosta de futebol não é brasileiro. Bem, você viu que seu destino o trouxe até mim, eu fui iniciado no ritual e busco discípulos. Você irá se unir a nós?"

Houve uma pausa longa. Após uma breve reflexão, desabafei.

"Senhor intelectual, me desculpe, mas terei de recusar sua oferta. Se eu não sei algo, eu simplesmente digo, assim me livro de quaisquer responsabilidades sobre informações falsas. É melhor se passar por burro uma ínfima vez e me redimir com classe depois com um vasto conhecimento. Já ouvi Jazz, até gosto, mas ainda tenho uma forte paixão com relação à música clássica ou instrumental pela liberdade de interpretação. Não curto reggae; não nego sua importância em certos movimentos políticos, falo inglês e compreendo que algumas músicas realmente buscam incitar um certo espírito libertador, mas o arranjo musical em si não me chama muito a atenção, prefiro deixar para aqueles que REALMENTE entendem todo aspecto desse estilo. Não digo que odeio Legião Urbana, apenas enjoei da lavagem cerebral que fazem com toda a população e do olhar de pena que te dão quando você diz que não curte. Além disso, não acho que a voz de Renato Russo seja magnífica. Quanto ao meu vestuário, prefiro optar por algo entre conforto e estética (por mais pessoal que seja). Se me fosse dada uma jaqueta de Giorgio Armani, não a recusaria se me agradasse. Vejo que, na verdade, ganhar o status de intelectualzinho aqui dá muito trabalho e acho que não vale a pena".

"Mas em instantes eles terão uma apresentação de Jazz logo ali, descendo a ladeira, no MAM, eu o apresentarei a todos os meus amiguinhos superlegais e eles nem notarão que você pode ser a ovelha negra!", disse PC.

"Não, obrigado", disse eu.

"Por favor, os Emos estão nos derrotando e correm o risco de quererem se vestir alternativamente como nós! Precisamos de mais membros!", disse PC.

"Vocês e os Emos são as mesmas coisas. Vocês tentam lutar para não transparecerem que na verdade não gostam de tal música ou sequer gostam de futebol, os Emos parecem lutar para esconder que são gays ou que estão passando por aquela fase da adolescência em que questionam suas sexualidades; vocês todos usam clichês e modismos como escudo. Garanto que em breve você vai querer colocar um dread no cabelo ou adotar um estilo rastafari. Eu prefiro fazer minhas próprias merdas sozinho", disse eu.

Voltei para casa irritado com a ironia daquele dia. Eu, que pensava ter "enganado" a senhora com gastrite, fui castigado por ela com a presença de um intelectualzinho. De agora em diante, compro suco quando ando pelo centro da cidade. Acho que vou passar a comprar um sanduíche extra também. E avisarei a qualquer mendigo que lhe pago outro sanduíche, caso tenha dinheiro, só para não ser importunado por um modismo encarnado de novo!
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