O leitor tem, na sua biblioteca, fragmentos de prismas que chama de livros. Eu poderia dizer que eles são espelhos refletores de sua identidade verdadeira, entretanto usei "prismas" porque, depois de ler esta obra, tento prevenir-me contra o impulso de reduzir a uma ou duas dimensões meu próprio ser, sobretudo no universo literário. O espelho reproduz a imagem do indivíduo e a limita a molduras e ângulos de visão, enquanto o prisma refrata essa imagem em várias partes e direções.
O lobo da estepe foi escrito em 1927, por Hermann Hesse (1877-1962), quando tinha 50 anos, a mesma idade do protagonista Harry Haller. Harry sente-se exausto aos 50, sente que já viveu e sofreu demais. Sua primeira mulher teve um ataque de loucura e um dia o expulsou de casa. Obviamente isso o traumatizou e ele, que sempre se dedicou aos deleites da vida intelectual (um ótimo leitor, articulista, apreciador de música erudita), sempre introvertido, acha difícil se socializar e também amar de novo. Por isso passa a definir-se como o Lobo da Estepe. O lobo também vive numa comunidade estruturada mas emana uma solitária essência.
“Como não haveria de ser eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio de um mundo cujo objetivo não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! (...) Não sei que prazeres e alegrias levam as pessoas a trens e hotéis superlotados, aos cafés abarrotados, com sua música sufocante e vulgar (...). Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem ar nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível”. (páginas 40-41)
O autor nasceu em 2 de julho de 1877, na cidade de Cawl, na Alemanha e ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1946, porém sua vida não foi desde o início voltada para a literatura. Ele teve uma educação severa e guiada por questões teológicas, uma vez que seus pais foram missionários. Somente aos 19 anos ele pôde, de certa forma, romper esses laços e começou a trabalhar numa loja de antigüidades e livros em Tübingen e Basileia.
Hesse põe-se inteiro neste livro. Suas crenças, seus gostos, suas interpretações da vida social. Conhecer Harry Haller é como ter um mapa para a personalidade do Hermann Hesse - um mapa desenhado numa mesa de bar, com todas as imprecisões da embriaguez e dos disfarces ordinariamente usados nos alter ego, mas ainda assim um mapa. Apesar de expor o que pensa sobre a guerra, a burguesia e o capitalismo em outros romances, é em O lobo da estepe que ele se despe intelectualmente, faz um mea culpa, é franco sobre suas contradições mais íntimas e se pergunta se, com meio século de vida, talvez já fosse o tempo ideal para explorar partes suprimidas de sua persona – o Harry vulgar, o dançarino, o vulnerável, o social, o que ouve música popular e até o que aprende a ver beleza e erotismo tanto na mulher quanto no homem sem entrar em crise existencial.
Harry não está desesperado, nem deprimido. Ele já pensou no suicídio como já pensou na estética dessa ou daquela poesia ou no próximo pão, todavia não planejava se matar. Ele prefere a dor infernal de suas enfermidades ou a sublimidade, a elação de um ótimo vinho acompanhado de um divino concerto de Mozart – o que ele não suporta são os dias calmos. Ele é aposentado, mas até tem dinheiro. O que lhe sobra é o tédio.
Posso compará-lo a uma outra personagem da literatura internacional: Alice, de Alice no País-das-Maravilhas e Através do Espelho (escritos por Lewis Carroll). Alice inicia sua viagem pelo País-das-Maravilhas quando encontra-se entediada no parque, pois sua irmã estava lendo e não lhe dava atenção, o que a levou a seguir o Coelho Branco até sua toca, o portal para o outro mundo. Harry começa a sua depois de caminhar, solitário e entediado, à noite, e encontrar uma porta num muro que costumava às vezes apreciar, ao cruzar certos recantos velhos e esquecidos da cidade. Acima dela um letreiro dizia:
“Teatro Mágico
Entrada só para os raros
Só para os raros”
Pouco depois de se afastar um pouco do lugar por não conseguir abrir a porta, o letreiro mudou: “Só para loucos!”. Como Alice, Harry precisou de um guia que não falava muito, apenas o incitava a curiosidade e mostrava o caminho: um vendedor ambulante e um cartaz onde se lia:
“Noitada Anarquista!
Teatro Mágico!
Entrada só para ra...”
Harry quis ir ao tal Teatro Mágico imediatamente e, assim como Alice teve de pensar muito para passar pela porta do Submundo, Harry recebeu como resposta “Não é para qualquer um”. Insatisfeito, quis comprar algo do vendedor e recebeu um livreto chamado TRATADO DO LOBO DA ESTEPE: Só para loucos.
Trata-se de uma jornada íntima, da auto-descoberta, por vias alegóricas, de um ser que só na maturidade aprende a não ofender sua própria inteligência dividindo-se apenas em dois: o bem (seu lado Homem) e o mal (seu sórdido lado Lobo da Estepe). O livreto é uma análise profunda e psicanalítica dele mesmo, entregue por um estranho. Alguns personagens aparecem para mostrar-lhe outras perspectivas do seu próprio eu; tais são Hermínia, Maria e Pablo. São desdobramentos da essência do Harry.
Hermínia (seu próprio nome é uma variação de Hermann) e Maria são seu lado feminino. Enquanto esta é seu lado mais mundano, a primeira é ele mesmo quase completamente, apenas com uma dosagem significativamente menor de erudição. As duas são garotas de programa. Maria é seu hedonismo sexual e se dá a Harry sem hesitar. Hermínia é seu par em perspicácia, seduzia Harry aos poucos para ele se apaixonar por ela e então matá-la, como ela mesma havia pedido. Pablo é o seu lado masculino despudorado, o homem ideal, bonito inclusive, com “olhos de mestiço”, um homem que Harry gostaria de ser (e ter) mas não tem coragem.
Pablo, o qual lhe foi apresentado por Hermínia, o conduz lá pelo fim do livro ao Teatro Mágico, um centro recreativo ao qual se chega com o uso de drogas. Para ter completo acesso, deve se livrar de todos os tabus e amarras, o equivalente a ir a um teatro real e deixar, na entrada, além do casaco e chapéu, todo o resto que cobre o corpo. Lá tantas coisas acontecem e o protagonista aproveita sua personalidade fragmentada dentro dos espelhos do Teatro para reescrever sua história, como num mundo paralelo, atrás de tantas outras portas.
Por tudo isso, é difícil encaixar este romance numa estante específica. Sim, é Literatura Estrangeira, mas deixá-lo lá, sem nenhuma outra pista sobre o que está em seu conteúdo, é como pegar um CD do Mozart e colocá-lo na estante de Música Internacional, cercado por Madonna e Marilyn Manson.
Este não é um romance estritamente psicológico, nem simbolista ou metafísico, muito menos de auto-ajuda. Na verdade, não é uma leitura para qualquer um. Não aconselha-se, por exemplo, aos utopistas e otimistas sujarem com seus dedos de algodão-doce as páginas deste livro e nem a estas sujarem com introspecção os olhinhos de unicórnio dos que só consideram importante a alegria patológica (histeria) e vêem no rebolar do quadril a salvação humana. Este livro ficaria no centro da minha biblioteca e refrataria os inúmeros raios que compõem minha identidade sobre todos os outros.
Tradução e prefácio de Ivo Barroso.
35a edição. Rio de Janeiro: Record, 2010.
Título original alemão: Der Steppenwolf
238 páginas
Foto disponível em http://1.bp.blogspot.com