Friday, 30 September 2011

O Bahia e as duas estrelas

Dois dias atrás foi emitida, pela CBF, uma IMT (Informação de Modificação de Tabela) notificando uma alteração de estádios para o Jogo 273 da Série A do Brasileirão. O Bahia agora enfrentará o Botafogo fora de casa, no Rio de Janeiro, exceto que ao invés de ser no Estádio João Havelange (o Engenhão), será no Estádio São Januário, no sábado (08/10) às 18h.

No motivo constava: “A mudança do local da partida decorre da cessão do Estádio João Havelange para show musical”. É uma leve surpresa, digamos assim, que apesar de o cantor que lá se apresentará ser um fenômeno, seu nome não tenha sido explicitado.

Não se trata de uma tentativa do Ronaldo de expandir-se mais (em termos de carreira), antes que perguntem. Sim, Justin Bieber usará o local em sua turnê. Segundo uma coluna do Estadão, jogadores do Corinthians, do Flamengo e do Fluminense queixaram-se sobre o evento, mas não necessariamente por causa da música. Não se sabe se algum deles tem a Bieber Fever (traduzindo, a “Febre do Bieber”), ou quantos seriam no total, mas eles entendem é de gramado e acham que este poderia sair na pior.

Pois é, por um lado é Justin Bieber 1x0 Jogadores (e os do Bahia também, caso voltem a jogar lá em breve e o campo ainda amargar as consequências do show do astro teen). Por outro, o torcedor tricolor não tem com o que se preocupar.

De fato, é possível que algum deles tenha sabido que a mencionada troca de locais poderia acontecer e, com todo espírito esportivo, tenha feito algum trabalhinho em encruzilhadas para ficar quite com essa “sensação canadense”. Isso porque, como noticiava o Jornal do Brasil há uns três dias, “Estão empacadas as vendas para o segundo show” lá.

Ainda não se sabe ao certo por que isso aconteceu. As vozes esganiçadas de menininhas, de quase todas as idades, fizeram de refém milhares de tímpanos de pais que, indefesos, acabaram dando a elas (e alguns eles, diga-se de passagem) os R$230 para curtir na pista ou até os R$490 para a Pista Premium.

Pouco provável que tenha sido o preço, afinal é o mesmo do dia anterior, e as entradas esgotaram-se rapidamente. Mas, pensando bem, talvez todo esse gasto para ver esse mega show possa explicar os ingressos encalhados para os de João Gilberto, em sua turnê que passa por São Paulo, Porto Alegre, Brasília e, claro, pela capital fluminense.

Para assistir a João Gilberto cantar com seu banquinho e violão – ou seja, nada de apresentação à la Cirque du Soleil –, no mínimo você pagaria uma Pista Premium do canadense (com a adição de R$10). Para quem quiser saber o valor máximo: R$1.400,00.

Inúmeros fans reclamaram internet afora, achando um excesso do juazeirense, gente como a gente, baiano, deixar que fosse cobrado tudo isso pelo seu aniversário de 80 anos. Uma idade que traz cabelos prateados pelas experiências, as quais valem seu peso em ouro. No caso dele, ícone da Bossa Nova, elas devem ser muito mais preciosas. Mas quem poderá se dar esse presente assim?

O que faz o torcedor do Bahêa diante disso? Vai aos cinemas, com seu humor peculiar e devoção, que hão de fazer com que nas outras sessões, as pessoas se entreolhem, sorriam com certa simpatia e digam “Ouça, pelos gritos de alegria, parece até que eles estão ocupando todas as outras salas”.

Ele faz o que mostra o documentário “Bahêa Minha Vida”, da Paris Filmes, sobre um time que também fez oito décadas de vida e, seja como for, sempre representou muito bem a Bahia, no futebol. Foi Campeão Brasileiro pela primeira vez em 1959 e de novo em 1988 e duas estrelas sobre o escudo para provar. São 102 minutos de uma produção baiana, em que aparecem famosos e não-famosos, falando desse Amor, roxo do azul com o vermelho e branco na paz dos torcedores conscientes e civilizados – o bom torcedor.

Uma programação cultural mais apaixonante e viável, mesmo se fosse em 3D e pagando a inteira. Só resta saber quantas estrelas o público e a crítica darão ao filme.
Foto: A Tarde (reprodução)
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Friday, 31 December 2010

Protesto contra todo Ano Novo

Recentemente fui tomado por um sentimento de inquietação. Li manifestações aqui e acolá de anti-Natalismo. Ora, mas o que leva as pessoas a odiarem o Natal? O que as leva a criticar com tanta veemência uma festa de celebração e fraternidade? Uma coisa é um simples não-gostar, outra coisa é repugnar.

Os argumentos que me deram foram dos menos convincentes possíveis. "Ah, é que tem muita hipocrisia nessa época", grita o primeiro blasézinho. Não, meu caro, sinto advertir-lhe de que Hipocrisia não é uma manifestação escatológica que o Papai Noel vai deixando como rastro ao cruzar os céus globalizados. As pessoas podem ser falsas e dissimuladas o ano inteiro. Em homenagem a tais indivíduos, os blasés de boutique, arrisco-me a escrever um texto com considerações sobre a Festa de Ano Novo.

Apenas para esclarecer, escreverei colocando-me em seus lugares de seguidores de modinha "Emo" a partir do parágrafo a seguir.

"Ah, eu odeio o Ano Novo. Coisa mais chata, sem graça. Ficar com a família vendo pela TV coisas como 'O Show da Virada' (ou seja lá como chamam isso, eu nem assisto TV mesmo, sou muito cool pra isso e para quaisquer outras formas de distração e pensamentos que não sejam originários de minhas idiossincrasias). Quando não é isso, a única escolha é sair com amigos até uma praia e ficar enchendo a cara, pisando em camisinhas à beira-mar, espinhos de rosas de oferendas a orixás ou garrafas de champagne enterradas na areia. Igualmente chato, tudo é chato, pra mim nada basta e qualquer tipo de alegria que não venha de meu próprio corpo já é uma inclinação ao diabólico Capitalismo.

Pois é aí mesmo que queria chegar. Ah, companheiros, pensavam que poderiam criticar o Natal apenas, por toda a Hipocrisia de ter gente à sua volta desejando-lhe felicidade e todos aqueles clichés? A Hipocrisia de ter uma ceia farta enquanto milhares de pessoas estão morrendo pela fome e pela miséria?! A Hipocrisia de vestir roupas novas?! A Hipocrisia de se sentir até minimamente feliz enquanto boa parte do mundo chora em prantos?! Vocês não têm vergonha? Sou eu o último e único a protestar hoje?! Vive la Résistance!

Tudo é Hipocrisia e Capitalismo, devemos lutar contra essas coisas. Aliás, prova de inteligência mesmo é manter um vocabulário que só gire em torno dessas duas palavras, assim como eu. Eu sou inteligente, vocês não. Afinal, o que proponho aqui é que esse meu discursinho de "Ebenezer Scrooge universitário do século XXI" - XXI é 21 em números romanos, para vocês capitalistas burros que não sabem - seja finalmente ecoado mundo afora antes do badalar da meia-noite.

De repente, o ano que tínhamos, 2010, já não serve. Oh não, temos todos de avançar para 2011! Somos todos obrigados a mudar de ano, de calendário, tudo mais! Comprar um novo calendário! Lembro-me de quando meu bisavô me contava suas histórias, do tempo em que o capitalismo não era tão voraz e ele poderia ficar no ano que quisesse por quanto tempo quisesse. Meu bisavô ficou no ano de 1870 por toda sua vida adulta. Assim como alguns iluminados dentre nós ficam nos anos 70 e 80, por sempre a choramingar músicas de Legião Urbana, Balão Mágico, etc. Mas minha geração está perdida, desgraçadamente perdida, burguesamente insana e faminta por dinheiro!

Quero registrar neste meu discurso que sou expressamente contra a mudança de ano, 2010 já foi ruim o suficiente e 2011 seria pior. Pensem em quanto isso irá nos custar, gente! Vamos nos sujeitar a isso? A esse ritual satânico de celebração capitalista? Não, meus companheiros blasés, vamos fazer abaixo-assinados, enviar correntes de e-mail sem fonte oficial e criar uma causa no Facebook e enviar uma carta para as Nações Unidas! Vamos nos mobilizar, gente!

P.S.: Gente, quem tiver um abadá do Camaleão (é nesse que sai a Claudinha Leitte? Sei lá, sou tão blasé que não ligo tanto assim. Escrevi o nome dela certo?), por favor me dê. É que cansei de sair na pipoca e eu não posso comprar - primeiro porque não tenho grana e segundo porque meus companheirinhos blasés de extrema esquerda revolucionária parariam de falar comigo se soubessem que eu dividi o abadá em 70 anos no cartão. Quero sair no bloco no ano que vem, porque se é pra levar cantada de cordeiro fedorento, pelo menos que seja do lado de dentro. Até porque, se eu ficar acessando meu 3G na pipoca alguém pode me roubar e não vou poder xingar no twitter sobre isso depois".
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Monday, 25 October 2010

Guia de Anti-ajuda

EDUCANDO PELA MÚSICA

Segunda-feira. De novo. A semana começa e volta a rotina. Esperar o maldito ônibus, superlotado e que cobra mais do que deveria. Rezar para que alguns de seus companheiros de transporte fiquem seriamente doentes, para sobrar um lugarzinho para sentar ou simplesmente apenas porque eles não têm noção de que banho se toma com água e não com desodorante – ou aquele perfume barato que não é igual ao seu. Mais um dia numa sala de aula com gente insuportável, ou num trabalho que não lhe paga o que merece. É óbvio que alguém tem de sofrer junto com você, já que suas preces de nada adiantaram e esse povo insiste em pegar ônibus até com gripe suína. O que fazer? Primeira dica: guarde o fone de ouvido e force todo mundo a escutar as músicas que você quer.

Alguns olham de canto, outros fazem cara feia (muitos nem precisam fazer tanto esforço). Eles parecem realmente não gostar. Doidos para pedir-lhe que diminua o volume, eles se seguram por educação ou por medo. Não importa que o chamem de anti-social, você sabe que estão errados porque esse título só pertence à gente feia e a quem não sabe se divertir. Pior seria tocar aquelas músicas de elevador. Música clássica dá depressão. Você está prestando um serviço comunitário, isso sim! Trazendo alegria em forma de funk carioca, arrocha, pagode e sabe-se lá mais o quê! Aí vem logo à memória o comentário de alguém sobre uma matéria no The New York Times (nem procure saber o que é isto, é importante porque está em itálico e em inglês) sobre os benefícios desses estilos e outros poucos mais que você curte.

Tantos minutos no trânsito infernal, você com medo de mexerem na sua mochila ou de ser molestado sexualmente e ainda aquela criança remelenta chorando no colo da mãe, sentada onde você poderia (deveria) estar. Há duas saídas: elevar o volume ao máximo para abafar o choro, ou reclamar com a mãe que a zoada da criança não está deixando ninguém escutar sua música. O volume vai ao máximo porque a mãe tem cara de quem faz barraco.

Agora digamos que você tenha dado sorte e esteja sentado, mas está muito abafado no ônibus e aquele povinho da colônia barata está bem perto. O que fazer? Volume no máximo, inicie a batucada. Daí para incentivar os outros a cantar junto, é um pulo. Isso é melhor que karaokê. Se você for do tipo macho, acuse os que não gostam, ou se afastam da música, de serem gays. Afinal, eles rebolam quando andam e você apenas quando dança. Se você é do tipo dama e quer manter alguma classe, apenas puxe um papo com o cobrador falando que aquilo é o verdadeiro significado de baianidade e quem não gostar pode sair daqui.

Bem, seus companheiros de viagem são parte da sociedade e muitos usam o máximo de quietude que conseguem achar, no chacoalhar do ônibus rangendo, para refletir um pouco e não se estressarem tanto. Nesse momento, é até lógico pensar que, se você toma atitudes que podem irritar os outros ocupantes daquele espaço, então pode ser chamado de anti-social.

Segundo o minidicionário Sacconi (1996), por exemplo, anti-social se define assim: “1. Que ou quem é hostil às leis e instituições sociais ou a qualquer comunidade organizada. 2. Que ou quem não gosta do convívio social. 3. Que ou quem é desrespeitoso(a) e indelicado(a) com os outros; grosseiro(a); rude”.

Nada tema, porque isso não dá cadeia – melhor ainda, não dá multa. E você talvez nem precise mudar. Se eles não apreciam o seu gosto ou a sua alegria, então provavelmente, ou melhor, certamente o problema está neles. Querem chamá-lo(a) de anti-social? Ora, que chamem! Eles é que são anti-sociais, querendo que você mude. Isso só pode ser inveja. Pois saiba, caluniado(a), que eu lhe escrevo dando dicas de como se comportar diante dos seus opressores mal-educados. Lembre-se sempre: “O maior prazer de todos é sempre o seu, porque você nunca poderá sentir o prazer do outro”.
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Enquanto você se diverte


Como vou tratar, neste artigo, do perigo do uso e propagação de um recente chavão em ano eleitoral, permita-me iniciá-lo com um conselho e outro clichê: se você for um otimista compulsivo e crédulo – quase a alma de qualquer personagem da Disney, com exceção dos que morrem no penhasco – aconselho abandonar este artigo, mas “se conselho fosse bom não se dava, se vendia”. Eu gostaria de vender vários para ganhar dinheiro e buscar a felicidade plena (ou quase) pela qualidade de vida, ao invés de virar um conformista como todo baiano que teima em repetir a frase “A gente se f*** mas se diverte”.

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Thursday, 9 September 2010

Águas de Março são imunes ao Aquecimento Global

 
Ontem, quarta-feira (08), assisti um programa da TV Cultura chamado Metrópolis. Foi bom. Exibiram uma matéria sobre a cantora de jazz norte-americana Stacey Kent, falando sobre o lançamento do álbum Raconte-Moi.... Numa entrevista informal, feita inteiramente em português, Kent se assumiu amante desta língua e, obviamente, da nossa música. Contudo, me faço a mesma pergunta do artigo  de Barbara Heckler ("É o inverno que acaba, é a neve que derrete") para a revista Bravo! de setembro de 2010, sobre a mesma cantora e sua versão em francês de Águas de Março, intitulada "Les Eaux de Mars": "Por que as músicas brasileiras escolhidas pelos versionistas são sempre as mesmas e têm pelo menos 40 anos de idade?"

Assim como Heckler, eu não me proponho a responder essa pergunta totalmente, nem parcialmente, apenas provocar uma possibilidade de resposta no leitor. Em seu artigo, ela apenas comenta esse fenômeno, mas não pareceu achar nenhum tipo de dado conclusivo. Fala de algumas versões de canções populares (popularescas) lá da Idade da Palheta Lascada de Tom Jobim (Bossa Nova, etc), pontuando antes com Carmem Miranda e Zé Carioca e todos os seus enfeites, penduricalhos e lantejoulas de Brazil e Saludo Amigos! respectivamente. A pergunta ficou suspensa até o fim e eu fiquei inquieto.

Por que isso? Por que ser sempre tão unidimensional com tudo? Cadê aquele ceticismo maroto dos bons tempos? Cadê o lado cômico-Schopenhauer de encarar os assuntos? Desconfie. A Bossa Nova passou por aqui como um tufão, isso é inegável - eu teria dito furacão, mas seria exageradamente forte e recuar para "brisa", por causa da voz sussurrante de João Gilberto, seria ofensivo aos fans. Mas depois, os indiozinhos aqui só viveram a admirar seu rastro e criar uma entidade toda-poderosa; por acaso ela nos castigará se tentarmos forçar aos outros países nossos próprios e mais novos enlatados culturais (musicais)? Quer dizer, o Brasil tem estado até expansionista ultimamente - também, com tanto brasileiro no exterior... Enfim, expansionista mesmo, porque quem ainda acha que o Brasil é o pobre garotinho negro e frágil, sofrendo bullying por parte do malvado imperialista Estados Unidos, deve procurar um psicólogo e tomar várias doses de jornais ao dia.

Ainda assim, o Brasil só tenta se afirmar pela Bossa Nova e tais ícones de uma eterna "glória do passado". Sempre vivendo dessas glórias. As Águas de Março nem ouviram falar do El Niño, mas a versão francesa de Georges Moustaki para Kent, Les Eaux de Mars, já fala de derretimento da neve. Eu assinei a Bravo! recentemente pois, há um tempo, eu a leio para descobrir o que existe de novo aqui, culturalmente. É maravilhoso que pelo menos em algum canto só se fale dessas glórias em ocasiões comemorativas. Heckler fala inclusive da "consagração internacional" de certas canções. Ora, esses jovens músicos (músicos, eu disse!) brasileiros aí facilmente se consagrariam nesse nível se quisessem. Não porque são brasileiros, mas porque paixão por música nasce em qualquer lugar e um talento bem polido leva naturalmente à consagração mundial, basta investir. Agora, não dá para investir em nada enquanto ficarmos choramingando os louros de Tonzinho, de Ary Barroso, Caetano, etc, etc, etc. Cristo, mais parecemos cachorros com um osso na boca!

Não quero dizer que os "clássicos" devem ser jogados no lixo. Jamais. Entretanto, é preciso reconhecer a diferença entre apreço saudável e saudosismo psicopata. Reconhecer a importância histórica ou comemorar datas e eventos memoráveis deveria ser algo esporádico mesmo, sobretudo uma estrutura basilar para o suporte de toda nossa evolução futura. Por que não se comemora o "Dia do Polegar Opositor"? Porque há coisas mais essenciais, já percorremos um longo caminho desde então e temos um futuro adiante.

"Por que as músicas brasileiras escolhidas pelos versionistas são sempre as mesmas e têm pelo menos 40 anos de idade?"? Porque, meus caros, o saudosismo acomete infinitamente mais sujeitos aqui que a Febre Mediterrânea Familiar e causa mais danos. Porque aqui só se encoraja continuar bajulando o pretérito. E pior fica no nível nacional: reparem que em todo fim de festa sempre tocam um sambinha lamurioso, todos os sucessos de Legião Urbana, blablabla, Balão Mágico, blerg! Graças a todos os deuses de verdade (não a Bossa Nova), inventaram MP3 e fones de ouvido, são meu antídoto para esse lambe-lambe de lágrimas. Querem cultuar a Bossa Nova e essas coisas? Evoluam daí, misturem mais, ousem mais, dêem mais chances aos novos talentos. Por favor, dêem aos gringos e a vocês mesmos uma chance de perceberem as várias facetas das identidades culturais, esqueçam de Saludo Amigos! e da Garota de Ipanema porque nem Botox segura mais aquela bunda, deixem essas nádegas musicadas descansarem! E mais importante: colaborem com os gringos, dêem a eles um novo repertório para suas versões.

Foto: Capa do novo álbum de Stacey Kent, "Raconte-moi...". Crédito: TheHindu.com
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Friday, 23 July 2010

RESENHA: "Os moedeiros falsos"



Pouco depois de encontrar Franny and Zooey de J. D. Salinger na livraria, avistei Os moedeiros falsos de André Gide. Dele, o que eu mais procurava mesmo, confesso, era O pombo-torcaz, cujo único exemplar disponível estava nas mãos de algum cliente. Instintivamente, e por um ciúme infantil, agarrei-me ao exemplar que agora apreciava. Enamorava-me por sua escrita desde a primeira página e tive ciúme dos avanços anteriores dos outros nela e nas seguintes.

Os moedeiros falsos foi escrito em 1925 – alguns dizem 1926 – por André Gide (1869-1951), ganhador do Prêmio Nobel em 1947. O título sugere algo que o conteúdo meramente pontua, como uma vírgula, sem a qual, entretanto, todo o resto não faria muito sentido ou pareceria precariamente fabricado e artificial. Este é também o nome do livro a ser escrito por um dos três personagens centrais: Édouard, tio de Olivier, o melhor amigo de Bernard. É interessante como a moeda falsa serve como objeto de metáfora, de metalinguagem e da intriga.

Até cerca da metade do livro, tem-se a impressão de que essas moedas falsas simbolizam cada personagem que se oferece e barganha uma estima alheia maior que a qual lhes cabe. Moedas manufaturadas, como aquela mostrada por Bernard durante uma conversa sobre o livro de Édouard (sem uma linha escrita sequer), quando ele diz achar melhor apresentá-la desde o início como um “fato bem exposto” ao invés de “partir de uma ideia”. Esta mesma moeda revelada a seus ouvintes, momentos depois, acaba por denunciar seu forjador – o qual é mencionado no começo, aparece perto do final e some rápido de circulação, não sem deixar prejuízos.

Gide obedece muito bem a organização de um romance, não há personagens jogados à sorte, todos os mencionados aparecem outras vezes para fechar um ciclo ou ligá-lo a um segundo, não importa o quão sutil. Aqui ele mostra que sabe escrever tanto para críticos quanto para o próximo leitor. Há aqui um cuidado, uma finesse narrativa, um “Ne me quitte pas!” de um amante que com charme e lábia lhe convence a deitar-se um pouco mais, virar cada página e despi-lo, cada passada de folha uma nuance mais convidativa.

Édouard sugere que sua estória não seria limitada por um tema só e portanto emularia a própria vida com seus eventos ad continuum e suas conseqüências nem sempre auto-solucionáveis. Assim também é este livro, por isso me agradou tanto essa leitura, alegro-me por começar a penetrar o mundo literário deste escritor com ele.

Como disse antes, pretendia ler O pombo-torcaz primeiro. Li uma pequena matéria sobre ele na revista Bravo! de agosto de 2009, na qual o jornalista e escritor José Castello questionava se “Existe uma estética homossexual?”. Nela, Castello mostrava certos autores homossexuais e o elo que mantinham entre a escrita e as relações homoeróticas. Enquanto uns exaltavam-nas ou depreciavam-nas, André Gide não as encarava com a afetação de Oscar Wilde (de quem era admirador, inclusive) ou o desdém de Marcel Proust. Ele era a favor do liberalismo sexual onde elas fossem vistas de modo natural, como o lazer e a interação dos sexos opostos.

O pombo-torcaz é também o apelido (carinhoso, arrisco dizer) que o autor deu a um rapaz com quem tinha relações no verão de 1907 em Toulouse. Ferdinand Pouzac fora assim chamado porque “arrulhava” feito um pombo quando eles faziam amor.

Há também a homoafetividade em Os moedeiros falsos, mas mesmo ela sendo importante como um contexto, talvez, ela é só um detalhe, quase tão discreta quanto outras ali das quais só podemos suspeitar. Eis o encanto: o livro não é um pretexto para levantar bandeiras de militância ou para ejacular as fantasias sexuais do autor tal qual um conto erótico vulgar de internet. Muito menos chega a ser um cenário tipo Homoville, onde até as pedras são gays; os personagens heterossexuais são representados igualmente, sem distinção.

Esta edição que tenho é muito boa, publicada pela Estação Liberdade em 2009, com tradução de Mário Laranjeira, impressa em papel pólen soft. Este não é um livro transformador. O pombo-torcaz tampouco deve ser. Mas ele causa boas sensações, é agradável de diversas maneiras. Não é o marco das obras de André Gide, contudo eu o considero uma belíssima apresentação. A única parte que não gostei é que perto do fim ele lhe prende, ou seja, para aquele leitor que gosta de terminar cada capítulo e guardar o próximo para depois, chegar ao parágrafo final e ver que acabou é tão ruim quanto morrer de fome e perceber que aquela era a última colherada de uma sobremesa incrível.


Dados técnicos:
Os moedeiros falsos
Título original: "Les Faux-Monnayeurs"
André Gide
Tradução de Mário Laranjeira
São Paulo: Estação Liberdade, 2009
ISBN 978-85-7448-160-9
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